Análise da Distorção Contemporânea de Eros e a Patologização de Philia: Uma Perspectiva Interdisciplinar
O texto apresentado propõe uma crítica contundente à forma como a sociedade ocidental contemporânea idealiza o amor romântico (Eros) enquanto marginaliza a amizade (Philia), transformando esta última em uma anomalia social. Para explorar essa tese, é necessário articular conceitos filosóficos, sociológicos e psicológicos, além de contextualizar historicamente as transformações nas concepções de amor. Esta análise estrutura-se em três eixos principais: a domesticação de Eros, a complexidade negligenciada de Philia e os mecanismos socioculturais que patologizam relações não hierárquicas.
A Domesticação de Eros e a Fabricação do Amor Romântico Idealizado
A representação de Eros como um "anjinho bochechudo" reduz o conceito grego original – associado ao desejo carnal e à volubilidade – a uma caricatura inofensiva. Na Grécia Antiga, Eros era uma força primordial, capaz de gerar tanto criação quanto destruição, como evidenciado no mito de Eros e Psiquê, onde a paixão desmedida exige sacrifícios transcendentais18. Contudo, a modernidade transformou Eros em commodity cultural, esvaziando sua complexidade em narrativas de "almas gêmeas" e finais felizes pré-fabricados.
Byung-Chul Han, em A Agonia de Eros2, argumenta que a sociedade do desempenho neutraliza a alteridade inerente ao eros, substituindo-a por uma positividade superficial. A liquidez das relações, como definida por Bauman1, reflete essa dinâmica: Eros, outrora uma força disruptiva, é agora um produto de consumo descartável, sustentado por filmes e músicas que glorificam a paixão efêmera. Marcuse, em Eros e Civilização10, acrescenta que o capitalismo cooptou a sexualidade, transformando-a em instrumento de controle social. A "repressão desublimada" permite que Eros seja vivido apenas dentro de moldes aceitáveis, como o casamento monogâmico, enquanto sua potência revolucionária é neutralizada.
Philia: A Amizade como Amor Subversivo
Enquanto Eros é celebrado, Philia – o amor fraterno e desinteressado – enfrenta desconfiança. Aristóteles via na amizade (φιλία) a forma mais elevada de amor, pois não se baseava em hierarquias ou contratos, mas em reciprocidade ética: "O amigo é outro eu" (Ética a Nicômaco)5. Esse conceito é corroborado por pesquisas contemporâneas que vinculam amizades sólidas à saúde mental, reduzindo riscos de depressão e ansiedade8.
A pureza de Philia, no entanto, colide com estruturas sociais obcecadas por posse. A amizade entre homens e mulheres, por exemplo, é frequentemente questionada quanto à existência de "desejos ocultos"17, refletindo uma incapacidade de conceber vínculos não mediados por Eros ou interesses materiais. Na visão de Han14, a sociedade narcisista neoliberal interpreta relações não utilitárias como ameaças, pois desafiam a lógica de desempenho e produtividade. A amizade, por não gerar lucro ou status, torna-se incompreensível em um mundo regido por métricas de sucesso individual.
Patologização da Philia: Mecanismos de Controle Social
O texto sugere que a psiquiatria e a moralidade cristã contribuíram para a estigmatização de Philia. Embora o cristianismo primitivo valorizasse a amizade como reflexo do amor divino (e.g., João 15:15, onde Jesus chama os discípulos de "amigos")4, houve uma guinada histórica. A partir da Idade Média, a Igreja passou a priorizar o amor ágape (caridade) e a desconfiar de relações horizontais que não servissem a propósitos espirituais ou familiares20.
Na modernidade, a psiquiatria desempenhou um papel ambíguo. Enquanto Freud via na amizade um espaço de sublimação saudável12, diagnósticos contemporâneos tendem a patologizar comportamentos que fogem à norma. A "medicalização do sentir"711 transformou dificuldades em relacionamentos não românticos em sintomas de transtornos, como a esquizotipia ou o "déficit de habilidades sociais". Essa dinâmica é particularmente evidente em casos onde a falta de desejo sexual é interpretada como disfunção, ignorando a possibilidade de vínculos baseados exclusivamente em Philia.
Conclusão: A Revolução Necessária
A marginalização de Philia revela uma contradição profunda: sociedades que idolatram o individualismo paradoxalmente temem a autonomia relacional. A amizade, por não se submeter a contratos ou expectativas de posse, desafia estruturas de poder arraigadas. Para resgatar sua importância, é necessário descolonizar o imaginário social do amor, reconhecendo que Eros e Philia não são opostos, mas complementares. Como propõe C.S. Lewis em Os Quatro Amores19, a hierarquização artificial dos afetos empobrece a experiência humana.
A revitalização de Philia exige um esforço interdisciplinar: da filosofia, resgatando Aristóteles; da teologia, recuperando a noção de amizade como imitatio Dei; e da psicologia, combatendo a patologização de relações não normativas. Enquanto Eros continuará a inflamar corações, Philia permanece como o alicesse silencioso – e subversivo – de uma humanidade mais ética e menos solitária.